ONTEM FOI O DIA DA POESIA (II)

Tal como foi no ano passado, deixo um poema para comemorar a data, um dia depois.
Sabemos todos que fora da Poesia não há salvação. Eu queria Celan, ou René Char que quase nunca publico, ou mesmo Mario Faustino que já vejo ser um pouquinho mais citado. Mas estou re-re-reapaixonada por Vinicius de Moraes. Todo o Rio de Janeiro está e acho que o Brasil precisava esquecer um pouco os estereótipos de enfant gaté, e letrista, boêmio e os diminutivos e se voltar para ao menos tentar (re) conhecer o grande poeta que ele foi. (Uma excelente sugestão seria o ler o próprio Vinícius acuradamente e ao mesmo tempo ler o livro do crítico e ensaísta José Castello, que já é um clássico: Vinícius, o Poeta da Paixão.
Assim sendo, permitam-me hoje homenagear Poeta e Poesia, com Vinicus de Moraes…porque hoje é sábado. Com este poema que o Poetinha (urgh!) certamente deve ter escrito, inspirando-se na ‘ideiazinha’ do querido Milton Ribeiro, neste “superpostzinho” aqui. Vinícius chamaria Miltinho, veja lá.

Este é um poema muito comentado e pouco conhecido: O DIA DA CRIAÇÃO.

Ouçam-no declamar (ainda se fala assim?) elese encontrava na Europa com amigos, poetas, cantores e letristas e músicos também. Uma noite em casa de Amália Rodrigues.

O DIA DA CRIAÇÃO

Macho e fêmea os criou.
Gênese, 1, 27

I

Hoje é sábado, amanhã é domingo
A vida vem em ondas, como o mar
Os bondes andam em cima dos trilhos
E Nosso Senhor Jesus Cristo morreu na cruz para nos salvar.

Hoje é sábado, amanhã é domingo
Não há nada como o tempo para passar
Foi muita bondade de Nosso Senhor Jesus Cristo
Mas por via das dúvidas livrai-nos meu Deus de todo mal.

Hoje é sábado, amanhã é domingo
Amanhã não gosta de ver ninguém bem
Hoje é que é o dia do presente
O dia é sábado.

Impossível fugir a essa dura realidade
Neste momento todos os bares estão repletos de homens vazios
Todos os namorados estão de mãos entrelaçadas
Todos os maridos estão funcionando regularmente
Todas as mulheres estão atentas
Porque hoje é sábado.

II

Neste momento há um casamento
Porque hoje é sábado
Hoje há um divórcio e um violamento
Porque hoje é sábado
Há um rico que se mata
Porque hoje é sábado
Há um incesto e uma regata
Porque hoje é sábado
Há um espetáculo de gala
Porque hoje é sábado
Há uma mulher que apanha e cala
Porque hoje é sábado
Há um renovar-se de esperanças
Porque hoje é sábado
Há uma profunda discordância
Porque hoje é sábado
Há um sedutor que tomba morto
Porque hoje é sábado
Há um grande espírito-de-porco
Porque hoje é sábado
Há uma mulher que vira homem
Porque hoje é sábado
Há criançinhas que não comem
Porque hoje é sábado
Há um piquenique de políticos
Porque hoje é sábado
Há um grande acréscimo de sífilis
Porque hoje é sábado
Há um ariano e uma mulata
Porque hoje é sábado
Há uma tensão inusitada
Porque hoje é sábado
Há adolescências seminuas
Porque hoje é sábado
Há um vampiro pelas ruas
Porque hoje é sábado
Há um grande aumento no consumo
Porque hoje é sábado
Há um noivo louco de ciúmes
Porque hoje é sábado
Há um garden-party na cadeia
Porque hoje é sábado
Há uma impassível lua cheia
Porque hoje é sábado
Há damas de todas as classes
Porque hoje é sábado
Umas difíceis, outras fáceis
Porque hoje é sábado
Há um beber e um dar sem conta
Porque hoje é sábado
Há uma infeliz que vai de tonta
Porque hoje é sábado
Há um padre passeando à paisana
Porque hoje é sábado
Há um frenesi de dar banana
Porque hoje é sábado
Há a sensação angustiante
Porque hoje é sábado
De uma mulher dentro de um homem
Porque hoje é sábado
Há uma comemoração fantástica
Porque hoje é sábado
Da primeira cirurgia plástica
Porque hoje é sábado
E dando os trâmites por findos
Porque hoje é sábado
Há a perspectiva do domingo
Porque hoje é sábado

III

Por todas essas razões deverias ter sido riscado do Livro das Origens,
ó Sexto Dia da Criação.
De fato, depois da Ouverture do Fiat e da divisão de luzes e trevas
E depois, da separação das águas, e depois, da fecundação da terra
E depois, da gênese dos peixes e das aves e dos animais da terra
Melhor fora que o Senhor das Esferas tivesse descansado.
Na verdade, o homem não era necessário
Nem tu, mulher, ser vegetal, dona do abismo, que queres como
as plantas, imovelmente e nunca saciada
Tu que carregas no meio de ti o vórtice supremo da paixão.
Mal procedeu o Senhor em não descansar durante os dois últimos dias
Trinta séculos lutou a humanidade pela semana inglesa
Descansasse o Senhor e simplesmente não existiríamos
Seríamos talvez pólos infinitamente pequenos de partículas cósmicas
em queda invisível na
terra.
Não viveríamos da degola dos animais e da asfixia dos peixes
Não seríamos paridos em dor nem suaríamos o pão nosso de cada dia
Não sofreríamos males de amor nem desejaríamos a mulher do próximo
Não teríamos escola, serviço militar, casamento civil, imposto sobre a renda
e missa de
sétimo dia.
Seria a indizível beleza e harmonia do plano verde das terras e das
águas em núpcias
A paz e o poder maior das plantas e dos astros em colóquio
A pureza maior do instinto dos peixes, das aves e dos animais em [cópula.
Ao revés, precisamos ser lógicos, freqüentemente dogmáticos
Precisamos encarar o problema das colocações morais e estéticas
Ser sociais, cultivar hábitos, rir sem vontade e até praticar amor sem vontade
Tudo isso porque o Senhor cismou em não descansar no Sexto Dia e [sim no Sétimo
E para não ficar com as vastas mãos abanando
Resolveu fazer o homem à sua imagem e semelhança
Possivelmente, isto é, muito provavelmente
Porque era sábado.

Sobre sub rosa
The most of all things and persons in the entire world drives me *flabbergasted". That includes me.

8 Responses to ONTEM FOI O DIA DA POESIA (II)

  1. Olha, Megleen. Papai gostava do Vinicius, da bossa-nova. Eu, para contrariá-lo, como toda boa aborrescente que se preze, dizia odiar. Mas, gosto. Não é que estou ouvindo direto Paulinho da Viola, Toquinho, Vinicius, essas coisas. Só queria que papai estivesse por aqui para ver. Que belo post! Beijos.

    Marie querida, entendi perfeitamente;-)
    Não fui aborrescente porque não tinha ninguém pra aborrescer, eu tava arborescendo e não tinha mãe;-)
    Mas lhe digo, colocar na mesmo linha Paulinho da Viola, *da best* e Vinicius e toquinho, olhaaa, amada…Dommage!
    Se fosse, Vinícius e Tom eu batia palmas.

    Mas de você eu gosto até ouvindo o grande nelson Ned: Tudo passa, tudo passaráááááá
    Filósofo, o moço, hein?

    beijos e mais beijos
    Meglyn;-),

  2. Detesto esses plagiadores que criam outros Porque hoje é sábado!

    =-=-=-=-=
    Hahahahahahah!

    Hahahahahaha
    Hahahahahaah

    Nem adianta eu dizer que te adoro porque já sabes mesmo.

    Olha só tô no fuso horário da China, de Macau, talvez.

    Passo anoite acordada e como durmo pouco e levanto cedinho agora seis horas da tarde (6 PM) que para mim são 6 AM;-)
    não pude admirar admirar e escrever sobre a astonished, outstanding Marlene Dietrich do teu post soberbo.

    Mas irei lá , só não sei em qual *fuso* horário;-)

    Beijo

  3. Cê tem que entender, Megleen, que tento me iniciar no gosto. Vou apurando aos poucos, né? Mas o Paulinho da Viola é bom, né não? Sei todas as letras de cor, já que papai ouvia muito, só faltava gostar. Agora, estou gostando… Nelson Ned é de doer. Sabe que me deu uma grande idéia para um post sobre ele? rsrsrsrs Beijos, querida e desculpe por minha ignorância em misturar tudo, tá?

    =-=-=
    sêboba, Marrí!;-)))
    Tá me desconhecendo, é?
    hahahahahah!!!!!
    Eu amo Nelson Ned, Aguinaldo cantando Mamãe e outras que o negão é fuego, e Benito pra dar um suavizada.
    Tudo está no seu lugar…belelelê…
    beijo

  4. AV says:

    Querida, fiquei tão triste por saber que não conseguiste ouvir aí o cd que te mandei, esse mesmo, gravado em casa da Amália!! Com o Vinicius, o David, o Ary, a Natália… que pena!
    Mas vou mandar-te outro que é surpresa, este bem original. Tá indo agorinha…
    Beijão e boa Páscoa, miúda!

    =-=-=-
    Minha qurida;-)

    A nossa Cat que está ali nos observando, por um milagre tinha.

    O seu está guardado e é um símbolo de Amizade.
    É que os pcs aí em Portugal são melhores que o meu, tadinho.

    Um beijo.

    Meguita, retribuindo o desejo.

    És um doce.
    Megggy

  5. Eduardo says:

    Meguita,

    um bom DOMINGO de Páscoa, lendo e vendo o que o Milton e o Vinícius fizeram juntos!]

    Bjs

    =-=-=-

    Obrigada, Edu:
    Vc é um anjo, nunca me esquece
    Todoa a felicidade para você, Paulinha e todos
    Beijos
    Meg

  6. O Réprobo says:

    Querida Meg.
    Celan e Char também são muito cá de casa. O poema de Vinicius cativa imenso, claro.
    Beijinho

    =-=-=-=-

    Ah, Querido Réprobo!
    Teremos então que trocar muitas coisas, porém eu tenho muito a apreender .

    Gosto muito de Char e temo-lo poico traduzido em português.
    Ah! não esqueçamos Herberto Helder, gosta?
    Um beijinho
    Meg

    P.S.
    A essência do Poema de Vinícus é o final. Cativa realmente pela litania do “por que hoje é sabado”, tanto que faz esquecer o grand finale. Penso eu.

  7. O Réprobo says:

    Sem dúvida, Meg.

    Para responder ao que me perguntou, tenho grande respeito pela poesia de H.H., embora não seja dos que me geram mais empatia. Esses são Eliot, Yeats, Rilke…
    No meu antigo blog publiquei um poema dele de que gosto bastante. Aqui:
    misantropoenjaulado.blogspot.com/2005/07/leitura-matinal-69.html
    Beijinho

  8. Nelsinho says:

    Vejam só…
    E eu nem sabia que havia,
    Um dia da poesia!

    Mas li o poema de um só fôlego…