
canova
NO MORE TEARS
Quantas vezes me fechei para chorar
na casa de banho da casa de minha avó
lavava os olhos com shampoo
e chorava
chorava por causa do shampoo
depois acabaram os shampoos
que faziam arder os olhos
no more tears disse Johnson & Johnson
as mães são filhas das filhas
e as filhas são mães das mães
uma mãe lava a cabeça da outra
e todas têm cabelos de crianças loiras
para chorar não podemos usar mais shampoo
e eu gostava de chorar a fio
e chorava
sem um desgosto sem uma dor sem um lenço
sem uma lágrima
fechada à chave na casa de banho
da casa da minha avó
onde além de mim só estava eu
também me fechava no guarda-vestidos
mas um guarda-vestidos não se pode fechar por dentro
nunca ninguém viu um vestido a chorar
IN: O decote da dama de espadas, 1988
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NÃO GOSTO TANTO
Não gosto tanto
de livros
como Mallarmé
parece que gostava
eu não sou um livro
e quando me dizem
gosto muito de seus livros
gostava de poder dizer
como o poeta Cesariny
olha
eu gostava
é que tu gostasses de mim
os livros não são feitos
de carne e osso
e quando tenho
vontade de chorar
abrir um livro
não me chega
preciso de um abraço
mas graças a Deus
o mundo não é um livro
e o acaso não existe
no entanto gosto muito
de livros
e acredito na Ressurreição
dos livros
e acredito que no Céu
haja bibliotecas
e se possa ler e escrever.
In:Florbela Espanca espanca (1999)
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FRAGMENTO
“Em 81 disse à Dr.ª Manuela Brazette, psiquiatra, “Eu sou feia”. Ela disse-me “Não é ser feia. Não há pessoas feias. Não tem é atractivos sexuais”. Lembrei-me então do homem que em 74, tinha eu 14 anos, se cruzou comigo no Arco do Cego. Lembrei-me do homem, da cara do homem vagamente, mas lembrei-me muito bem do que ele me tinha dito ao passar por mim. Tinha-me dito “Lambia-te esse peitinho todo”. Lembrei-me também da meia-dúzia de outros homens que durante a minha adolescência me tinha dito quando eu passava “Coisinha boa” e “Borrachinho”. Ainda hoje me sinto profundamente agradecida a esses homens. Pensei que estavam a avacalhar, que eram uns porcalhões. Mas quem estava a avacalhar era a Dr.ª Manuela Brazette, ela é que é uma porcalhona. Acho que um homem nunca consegue ser mau para uma mulher como outra mulher.
(In: Irmã barata, irmã batata. Braga/Coimbra: Angelus Novus, 2000)
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COUP DE GRÂCE
Uma mulher
nunca pode
apaixonar-se
por um homem
antes de o homem
se apaixonar
por ela
o homem pune-a
por isso
e por muito mais
o homem não a abate
vai-se embora
fechado em copas
a mulher pune-se
a si mesma
se não tem vergonha
por si
tem pena
menina e mãe
num saco
estóicas
como a pescada
que antes de o ser
já o era
(In: Obra. Lisboa: Mariposa Azual, 2000
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Não podemos
desamar
quem nos ama
Se nem
quem nos desama
podemos desamar
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Mesmo
uma linha
recta
é o labirinto
porque
entre
cada dois pontos
está o infinito
IN:Caderno, &Etc, 2007
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COM FOGO NÃO SE BRINCA
Com fogo não se brinca
porque o fogo queima
com o fogo que arde sem se ver
ainda se deve brincar menos
do que com o fogo que arde sem se ver
é um fogo que queima
e muito
e como queima muito
custa mais
a apagar
do que o fogo com fumo.
In: Um Jogo bastante perigoso, 1985.
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Clarice Lispector,
a senhora não devia
ter-se esquecido
de dar de comer aos peixes
andar entretida
a escrever um texto
não é desculpa
entre um peixe vivo
e um texto
escolhe-se sempre o peixe
vão-se os textos
ficam os peixes
como disse Santo António
aos textos.
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Minha avó e minha mãe
perdi-as de vista num grande armazém
a fazer compras de Natal
hoje trabalho eu mesma para o armazém
que por sua vez tem tomado conta de mim
uma avó e uma mãe foram-me
entretanto devolvidas
mas não eram bem as minhas
ficámos porém umas com as outras
para não arranjarmos complicações.
In: Clube da Poetisa Morta, 1997
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Palavra (escolhidas) de Adília:

“Adília Lopes e Maria José da Silva Viana Fidalgo de Oliveira são uma e a mesma pessoa. São eu.”
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“Há sempre uma grande carga de violência, de dor, de seriedade e de santidade naquilo que escrevo”.
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“Tive um esgotamento psíquico no Natal e estou a escrever isto no princípio da Primavera. Sinto que ainda não estou bem. Peço desculpa por o texto ser breve e aos saltos, aos trambolhões.
Escrevo sempre por inspiração e num impulso. Sophia de Mello Breyner Andresen diz muito melhor do que eu o que é e como é para mim escrever um poema. Está tudo em “Arte Poética IV” de Dual.
O poema que ilustra e encima este meu texto foi escrito da seguinte maneira que passo a registar.
Eu vivo de uma maneira sofrida actualmente porque tenha uma doença psíquica, posso vir a ter dificuldades de dinheiro e o mundo não está cor-de-rosa. O dia a dia é muito sofrido. Desde que o meu pai morreu que decidi deixar crescer o cabelo que usei sempre muito curtinho durante 21 anos seguidos. Passados dois anos e só dois pequenos acertos do cabelo, decidi experimentar fazer rabo de cavalo. Comprei um elástico e quatro ganchos. Essa compra motiva o poema, a meu ver.
O poema surge assim de minha vida presente e passada. É autobiográfico à sua maneira. Já não uso rabo de cavalo. Surge da leitura. E surge da Sophia. Decalquei o poema “Soror Mariana – Beja”, de O nome das coisas.
SOROR MARIANA – BEJA
Cortaram os trigos. Agora
A minha solidão vê-se melhor.
A expressão “em rabo de cavalo” é o quotidiano. As minhas grandes influências, que admito e reconheço, são Sophia, Ruy Belo e Sylvia Plath. Foi com eles que comecei a escrever e é com eles e por eles que continuo a escrever e a ler.
Eu tenho a minha vida, mas assim como digo “Bom dia!” e a expressão “Bom dia!” não é de minha autoria, alguém a inventou muito antes de mim, a minha poesia é como se não fosse minha. Sinto-me despojada, desapossada, despossuída da minha poesia. O que faço é conviver: pôr a minha vida em comum.
A ideia das sombras e do desassombro não é também minha. Um namorado dizia a certa altura que havia menos sombras em mim, o que me fez ver que tinha havido e que havia sombras em mim. Um programador de televisão falou de desassombro a respeito de algumas das minhas prestações televisivas.
A minha poesia é uma poesia ao quadrado. Fiz uma metáfora de uma metáfora: em vez de trigos cortados, o cabelo apanhado em rabo de cavalo. Acrescentei um capitel: as sombras. Onde a Sophia viu paisagem, eu vi o meu corpo.”
(publicado originalmente na revista Relâmpago número 14, de Portugal e em 2008 na revista Inimigo Rumor nº 20)
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OBRAS DE ADÍLIA:
Este é um grande problema. Só tomei conhecimento do mundo de Adília Lopes, quando ela “desembarcou” no Brasil, em 2002, com a ‘Antologia’, organizada pelo Carlito Azevedo, com posfácio da Flora Susssekind – minha ‘ídola’- publicada pela Cosac Naify, e a essa altura, ela já fazia poemas e poesia há tempos. (Observem os títulos, o que já é uma pista “quente” sobre a autora e os sutilíssimos vieses de sua obra. Sempre sarcástica, irônica e dedoublée. Aparentemente ingênua ou de menor importância, devia vir com um aviso: cuidado, o que vc está lendo contém referências – as nem sempre e as completamente – explícitas a Ann Sexton, Sylvia Plath, Rimbaud, Verlaine, Camões, Clarice Lispector, Soror Mariana Alcoforado, Fernando Pessoa, Sophia, ah! e as intertextualidades todas e mais algumas… ). Adília não tem medo do ridículo. Faz-se de tonta e muitos dizem que se expõe mais do que se devia. Fala de sua doença e de sua aparência. E daí? Afinal… e o risco subscrito que faz parte do jogo perigoso?
Deliberadamente não escrevi nada pessoal ou (im)pessoalmente crítico. Para quê? Não só agora, Adília é já conhecidíssima, a internet está coberta de ‘adílias’. Uma verdadeira *sociedade da poetisa viva*. Reparem, ela escreveu um livro chamado “Clube da poetisa morta”. Melhor alusão que essa? Para além disso, a mistura que faz entre o (auto)biografismo, o lírico e o poético e o prosaismo da narração, alguns de seus poemas são narrativas – ela faz questão de mostrar… é o que imprime beleza, em seu modo tão ‘despreconceituoso’ , a uma invenção intertextual, que é um verdadeiro ganho insuspeito para quem a souber ler. Leiam comigo e descubra – e me ajudem a descobrir, as marcas, os slogans, os aforismos, os *ditados*, os provérbios reconstruídos (a pão e agua de colônia, não é lindo e genial?), seus gatos que gostam de brincar com as baratas (dela). Vocês lembram de um shampoo [xampu] chamado Vidal Sassoon?, pois Adília faz a festa, com Judith, Dalila e Salomé e seus próprios cabelos.
Pois bem, falando de águas que são passadas e de moínhos que são movidos, até que não faz mal dar uma lida aqui na wikipedia.
Só para (não) finalizar, fiquem com esse presente que me dei: Adilia Lopes; as crônicas do meu moínho.
***** Bibliografia:
[Primeiras edições: Um jogo bastante perigoso. Lisboa: da Autora, 1985;
O poeta de Pondichéry. Lisboa: Frenesi/ & etc., 1986;
A pão e água de colônia (seguido de uma autobiografia sumária). Lisboa: Frenesi/ & etc., 1987;
O marquês de Chamilly (Kabale und Liebe). Lisboa: Hiena, 1987;
O decote da dama de espadas (romances). Lisboa: INCM/Gota D’Água, 1988;
Os 5 livros de versos salvaram o tio. Lisboa: da Autora, 1991;
Maria Cristina Martins. Lisboa: Black Sun, 1992;
O peixe na água. Lisboa: & etc., 1993;
A continuação do fim do mundo. Lisboa: & etc., 1995;
A bela acordada. Lisboa: Black Sun, 1997;
Clube da poetisa morta. Lisboa: Black Sun, 1997;
Sete rios entre campos. Lisboa: & etc., 1999;
Florbela Espanca espanca. Lisboa: Black Sun, 1999;
Irmã barata, irmã batata. Braga/Coimbra: Angelus Novus, 2000.]
A mulher-a-dias. Lisboa: & etc., 2002.
César a César. Lisboa: & etc., 2003.
Poemas novos. Lisboa: & etc., 2004.
Le vitrail la nuit * A árvore cortada. Lisboa: & etc., 2006
***
E mais:
Dobra – Poesia Reunida. Assírio & Alvim, 2009
Apanhar Ar. Assírio & Alvim, 2010
(Neste, último, o que reservará Adília para nós? Eu, confesso muito triste, ainda não sei. E você o que achou? O que acha? Foi para vocês que fiz o post, talvez tenha ficado assim mais ou menos, mais pra menos, mas lhes digo, falar de Adília é isso, uma odisséia, verdadeira tarefa de Ulisses:-)
(updated)
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