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´A CANETA EMPRESTADA
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Para Ana Martins Marques
A caneta do florista
tenta um floreio, mas a mão
que por empréstimo a empunha
não sabe fazer desabrochar
a flor no ar livre do papel
nem desenhá-la, sequer.
A caneta do porteiro
aponta o andar, e espera
que o ponteiro do elevador
acuse se o destino foi o certo
e a porta abriu ou não.
A caneta do jornaleiro
na verdade um toco de lápis
suado, oferecido como um mágico
que o tira detrás da orelha
tem a pressa da notícia, o furo
cabeludo do ouvido em primeira mão.
.
A caneta do amolador é uma faísca
um risco, um guincho que varia
que vaivém querendo afinar
o que vai dizer ou cantar agudo
de ouvido, sem partitura.
A caneta do garçom serve melhor
por que tem uma mesa à mão
onde o tempo não passa
como reza o ditado, por causa
da carne e do vinho?
A caneta do frentista
que apara o carro, e o redesenha
da carroceria ao para-brisa:
a poder de estopa, flanela e élan
com água e espuma meticulosas
que desembaçam a paisagem
os óculos escuros, os olhos
do motorista na longa via.
.
A caneta do ambulante
se expressa por garranchos:
voz alta, rouca, errada
aos arrancos, enquanto
perambula rua afora
entre pregão e correria
fixado camelô de si mesmo.
.
A caneta do médico
ao mesmo tempo
que prescreve a receita
vai costurando a ferida
ponto por ponto
e sua letra indecifrável
é o gráfico da cicatriz.
.
A caixa do supermercado
é de carne, rímel, coque
com a blusa do uniforme
aberta em três botões
que a desuniformiza no ato.
Sua caneta roxa vertical
não pode ser emprestada
pois anota compras sem parar
como a dos dois melões
que o comprador, na beirada
dela, também anota, sôfrego:
só que não são os mesmos.
.
O lavador de carros, sonolento
à beira do mar aberto – à toa –
não tem caneta, tem mangueira
balde, pano e muita água gasta
que dava para lavar um ônibus
na lagarteante tarde de sábado
que passava, desperdiçada, sem
que ninguém fechasse o registro.
.
As canetas dos meros transeuntes
se reúnem numa só: Bic!
Com sua elegância de atleta, esbelta
passando de mão em mão, masculinas
a maioria, azul, preta, no bolso
ou cravada, junto da jugular
na gola da camiseta, vermelha.
.
A caneta imprestável de alguém
quase sem carga, não serve mais
para acompanhar o pensamento
que iria se firmar a partir
da sua ponta esferográfica.
Por mais que tente recuperar-se
através de riscos irritados
falha, gaga, gasta, e se cala.
.
A caneta do chaveiro é à clef
por natureza, e se insere macia
no início, e depois estala:
com seu ruído de ferro fundido
ao dar as quatro voltas do segredo
na palavra-chave – La Fonte.
.
A caneta marca AMM
é à prova d’água, por isso
não precisa de diques, nada
e vai fundo, para o que der e vier.
É única, não é feita em série
e só funciona na mão dela.
Neste envoi, escrevo com a minha
e firmo: como é bom ter de novo
uma poeta chamada Ana.
ARMANDO FREITAS FILHO, 76, poeta, é autor de “Dever” (Companhia das Letras).
Retirado fa FOLHA DE S. PAULO
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